Partilhamos aqui duas intervenções da Celebração da Paixão do Senhor em Sexta-feira Santa: a homilia da Rita Sacramento Monteiro e a meditação junto à Cruz feita pelo André Folque.
Reflexão sobre a Paixão e Morte do Senhor, Rita Sacramento Monteiro
Vivemos por estes dias e em três actos – Mesa, Cruz e Sepulcro – dias síntese da nossa fé e da nossa existência. E é por isso que, a cada ano, acontecimentos ocorridos há tantos séculos, fazem da Páscoa, sempre, uma primeira vez.
Como podemos compreender os acontecimentos da Paixão e da Morte de Jesus? Tão desconcertantes, revoltantes e profundamente tristes. Um homem desarmado, pacífico e cuja mensagem é de Amor, é levado através de um julgamento indigno, revelador de como o pecado vicia pessoas e estruturas, e conduzido a uma morte bárbara perante o olhar daqueles que o acompanhavam e daqueles que o perseguiam.
Hoje talvez o mais importante não seja sermos capazes de compreender e abarcar todos estes acontecimentos pela nossa razão, mas sim acompanhar Jesus a partir do nosso coração e da nossa vulnerabilidade e junto d’Ele deixarmo-nos ser e estar como somos e estamos neste momento da nossa vida.
Neste relato do Evangelho estamos presentes toda a Humanidade. Está presente aquilo que em nós é viciado e gerador de corrupção e injustiça. Estão presentes o ódio, a ganância e o medo. O medo de Pedro em dizer a verdade, o medo que leva a procurar seguranças no dinheiro, como vemos em Judas, e no poder, como vemos em Pilatos. O medo que bloqueia e aprisiona e que por isso levará a que se negue a vida de um homem inocente.
Olhar estes diferentes diálogos e gestos e imaginarmo-nos no lugar de cada uma destas pessoas, é um convite a olhar a realidade e a perceber que as exigências do bem comum, de seguir a Jesus no dia-a-dia têm marca de Paixão. E é também um convite a que nos sintonizemos com as realidades feridas de tantas irmãs e irmãos nossos.
Penso nas crianças e jovens, nos mais frágeis e inocentes, que veem chegar às suas terras homens armados para lançar a guerra e a destruição. Penso em todos os que são perseguidos e não vivem em liberdade. Penso na arma da exclusão que fere tantas pessoas. Penso na indiferença na qual nos deixamos anestesiar perante as realidades próximas que pedem a nossa ação. Penso em todos os que sofrem na carne e no espírito as dores da doença, as dores da maldade, as dores da tristeza e da falta de sentido.
Acompanharmos Jesus na sua Paixão e permanecermos junto a Ele na sua morte é também oportunidade para olharmos as nossas noites escuras e esperas prolongadas. Não precisamos de inventar ou idealizar a Paixão nas nossas vidas. Mas sim de estarmos próximos e atentos para aprender dos gestos de Jesus. Quantas vezes somos cada uma destas figuras e partimos do medo, do ego, da soberba? Quantas vezes pensamos que o bem do outro não tem a ver connosco e por isso passamos ao lado? E quantas vezes vivemos sem alegria como se Deus não existisse e Jesus não tivesse Ressuscitado?
Ao medo, à traição e à injustiça, vemos na presença e nos gestos dos que acompanhavam Jesus, e de José de Arimateia e Nicodemos contrapor-se a beleza do acompanhamento, da confiança e do cuidado daqueles que permanecem. Penso em todos os que cuidam dos mais débeis e vulneráveis, dos que permanecem no amor quando o amor dói, e nos que esperam no Senhor apesar do silêncio, das dúvidas e da espera.
Queridas Irmãs e Irmãos, estes dias recordam-nos a essência da nossa própria vida. Estas horas de Jesus, este seu caminho de Paixão e o amor que derrama da Cruz, convidam-nos a um encontro com os nossos próprios limites. Deixemos vir à superfície todas as nossas fraquezas e fragilidades que tantas vezes nos ocupamos de esconder ou, que por os ignorarmos, nos levam a becos sem saída. Não há Ressurreição sem a Paixão e não há recomeço, vida nova, sem a experiência humana do nosso limite. Ninguém passa da dor à Ressurreição pelas suas forças nem sem atravessar o caminho que Jesus já abriu. Quantos de nós vivem neste momento tempos de Paixão e de Cruz e neste Jesus confiado no Pai podem hoje encontrar consolo e companhia? Quantos de nós já fizeram experiência real de Páscoa nas suas vidas, nascendo de novo para a vida? A Ressurreição de Jesus oferece-nos um horizonte para sempre e por isso é já experiência de eternidade. Mas para tocarmos o sentido que ela abre na nossa vida e na história de salvação do mundo, é preciso deixarmo-nos mover por dentro enquanto acompanhamos Jesus.
Com a morte de Jesus desce um silêncio profundo sobre a terra. Que difícil imaginar um mundo sem Deus, sem a Ressurreição de Jesus, sem beleza e sem fraternidade. Que seria de nós se Jesus não ressuscitasse? Que sentido veríamos no mundo se a vida não se manifestasse e apenas testemunhássemos a divisão e as guerras? Esta espera custa. É angustiante pensar num mundo onde apenas prevalece a nossa vontade, mas recordando as palavras do profeta Isaías, Jesus é a raiz numa terra que por vezes é demasiado árida. Tenhamos por isso a coragem de permanecer pois sabemos que esperamos no Senhor. Não é apenas um homem bom e pacífico que ali morre, é o Filho Deus que atravessa os limites da existência humana para nos deixar um testamento de como viver e proceder. E como diz São Paulo na IIª leitura nós não temos um sumo sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas. Ele aí está, para nos sustentar. Jesus não aponta só o caminho para o Pai, Ele dá-nos a mão. Não larguemos a sua nestas horas. Fiquemos junto a Ele enquanto esperamos a alegria maior do Domingo Santo.
Exaltação da Cruz, André Folque
Eis, neste madeiro,
Jesus de Nazaré, o crucificado.
Erguem-te na cruz,
no calvário da cidade santa.
e, bem perto, na tua Palestina,
na vizinha Síria, no Líbano
e nas demais terras que percorreste,
continuam a crucificar-te.
Crucificam-te em outras paragens,
nos campos e cidades
da Ucrânia devastada,
nos campos e cidades
de tantos outros lugares
que só a geografia da guerra
e a banalidade dos noticiários nos vai dando a conhecer.
Ali o teu sangue corre, dia a dia,
às mãos do arbítrio e da violência,
às mãos de soldados que,
por vezes,
não sabem sequer o que fazem.
És crucificado
nos massacres terroristas,
cujas vítimas são dizimadas
por ódios que nem tiveram tempo de conhecer.
Massacres desferidos pela insânia de homens e mulheres,
embriagados por fanatismos tão rudimentares
que não permitem dúvidas nem incertezas.
São homens e mulheres
patrocinados pelos fabricantes do medo.
Estes, sentados nos tronos da hipocrisia,
servem-se dos Judas Iscariotes dos nossos dias.
Também te crucificam
nas terras dos mais pobres entre os pobres.
Terras que, por vezes,
vivem a maldição de serem ricas de recursos.
Recursos esbulhados
por quem promete
quimeras de abundância,
mas só conhece a avidez do lucro
e dos paraísos fiscais.
Crucificamos-te, ainda,
ao trocarmos a beleza
das terras e mares
que o pai nos confiou
pelos caprichos tecnológicos de última geração,
pela idolatria do estatuto,
da aparência, do conforto
e da distinção social.
Os luxos que deitamos ao lixo,
no fim de cada moda ou estação,
trazem as marcas da tua cruz.
És crucificado, Jesus,
nos campos dos refugiados,
sem nome nem rosto,
mas também em depósitos de velhos a que chamamos lares de idosos,
nos bairros da cidade,
despejados pela cobiça desenfreada do pitoresco,
pela torrente da especulação em redor de uma fresta de paisagem,
por rendas obscenas,
de trinta dinheiros o metro quadrado.
Como continua a multiplicar-se a tua cruz
nas águas do grande coval azul mediterrâneo,
na perseguição de vulneráveis comunidades cristãs da Ásia e da África,
mas também nesta Europa
das velhas catedrais,
sempre que o teu evangelho incomoda os dogmas do laicismo militante
ou as verdades feitas
do ideologicamente correto.
Há milhares e milhares de cruzes,
nos lugares onde sofres, choras e morres
sem que ninguém dê por isso:
casas de famílias, escolas, locais de trabalho,
onde te crucificam
de um modo tão abjeto,
que nem ao diabo lembraria.
Crucificamos-te, Jesus,
sempre que a utilidade é critério do nosso agir,
e nos deixamos seduzir pela frivolidade.
Sempre que as conveniências
servem de encosto
à nossa indiferença
ou à nossa cupidez.
Crucificamos-te sempre que, nos braços dos outros, a tua cruz nos parece leve.
Quantos não tentam fazer da tua igreja um quartel general das suas próprias ideias
e a que, despudoradamente,
chamam tradição?
Quantos não querem fazer da tua igreja um espelho do seu narcisismo ou um escabelo das suas frustrações?
Quantos não preferiam a anestesia à sinodalidade?
Os odres velhos ao vinho novo?
Quantos não procuram, afinal, uma cruz de sinal contrário:
uma cruz na porta de cada igreja,
a informar que o amigo de publicanos e prostitutas faleceu sem testamento.
Que o evangelho que anunciou é demasiado complicado para se levar a sério…
E que, por isso,
escusa de aqui entrar
quem viver em pecado.
Eis que subvertem a tua cruz,
estreitando a porta da tua igreja:
reservada a famílias santas,
a jovens sem demasiadas inquietações,
aos homens e mulheres que cumpram religiosamente os preceitos e deem prova de irrepreensíveis costumes.
Aos pés dessa cruz,
por certo bem dourada,
há quem, de dedo em riste, destine aos renegados
o lugar cativo que os espera no inferno.
Essa é a cruz da mentira.
não é tua cruz.
A tua cruz é esperança
para os famintos de todas as fomes:
fome de paz e de pão,
fome de saúde e de emprego,
fome de morada digna
e por justo preço,
fome de liberdade e de uma justiça justa, sem atavios,
fome de ar puro e sede de água que se possa beber,
fome de instrução e de cultura,
fome de dignidade e de esperança,
fome de amor.
Senhor,
se nos dizemos teus discípulos,
por que nos tornámos teus carrascos?
Por que te não imitamos no vigor profético do sucessor de Pedro
e preferimos entreter‑nos
a sortear as tuas vestes
ou a bordá-las com rendas engomadas?
São as vestes de cada irmão
que crucificamos,
às vezes, na nossa terra,
no caminho para casa,
no nosso prédio,
na escola ou no emprego,
na nossa igreja,
ao nosso lado?
Eles morrem aqui, hoje,
porque não quisemos,
ou ignorámos,
o pequeno gesto quotidiano
da partilha e do cuidado.
Porque relegámos o bem comum
para o abstrato dos conceitos,
desprezando o concreto
dos gestos de cuidado.
Porque preferimos a pequena inveja, o rumor,
o rancor mesquinho
e a incapacidade de perdoar.
Muitos crucificados, Senhor,
são vítimas da nossa distração,
são vítimas de verdades feitas
e do nosso conformismo.
Eles morrem, perto ou longe,
porque pactuamos com a injustiça,
porque não somos luz,
sal, fermento,
neste nosso mundo a transformar.
São eles que vemos contigo
pregados na cruz.
Na cruz da nossa impaciência,
na cruz do que gostamos de chamar falta de vagar,
na cruz da nossa miopia seletiva.
Senhor crucificado,
não nos deixes ignorá-los,
não nos deixes distrair.
Não deixes que o nosso olhar de cada dia deixe de se cruzar com a mansidão do teu olhar.
Ensinaste-nos que é possível
uma cidade mais justa
e mais fraterna,
que é possível uma igreja do sorriso,
em saída, ao serviço,
com lugar para todos os que te amam,
mas também para os que te procuram.
Uma igreja de alegria,
que testemunhe a confiança no pai,
porta aberta ao espírito
que renova a face da terra.
Abre-nos o coração e o gesto.
Ressuscita-os
e ressuscita-nos contigo.
Queremos ver a tua Páscoa
ser a Páscoa de todos
a reflorir na paz,
na esperança
e no amor.